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Anjo

Estava quase na hora. O despertador quebrado jazia na cabeceira da cama. Quer saber como eu sabia o horário? Bem, eu sempre contei os segundos. Em meu quarto só ficaram os móveis velhos, e aquela janela sem vidro, pela qual sempre gostei de olhar as estrelas.

Para onde eu ia, não precisaria levar as roupas velhas em meu armário, e nenhuma das lembranças que guardava nele. Exceto uma. Havia uma coisa apenas que eu levaria comigo. Uma lembrança de momentos mágicos... que eu lamentava ter de deixar para trás, mas não tinha escolha.
- Me perdoe, Angeline... me perdoe.
Levantei. Já havia esperado tempo demais... O mundo ansiava para que eu me apressasse, almejando a hora em que eu o deixaria para sempre.
Por mais que pareça meio melodramático, sempre pensei em morrer no alto de uma colina, olhando o céu. Como se, estando mais perto fosse mais fácil alcançá-lo. Sorte minha morrer cumprindo este desejo. Azar o meu ter certeza de que não chegaria ao firmamento antes de cruzar o purgatório.
Fiz questão de deixar uma carta na caixa de correio de Angeline, uma carta ardorosa de amor. Falei tudo o que sentia por ela, coisas que eu nunca disse, e que ela sempre mereceu ouvir. Ela já sabia o que eu estava prestes a fazer, e apesar de fingir-se de forte, eu sabia que em seu interior ela sofria. Só que eu não tinha escolha... e ela ficaria muito melhor sem mim. Todos ficariam.
A colina a qual cheguei, eu sabia que seria a escolhida na primeira vez que a vi. Assim como Angeline. Em seu topo, estendia-se desinibida pelo solo, uma procissão de flores, de várias tonalidades. Pena fosse noite... Se fosse dia eu poderia admirá-las com a dignidade que mereciam. Olhando para além daquele cume, exibiam-se as belezas de minha cidade... com toda a sua constelação de luzes coloridas... Pessoas andando, passeando com suas famílias, seus cachorros... com sua felicidade. Essas alegrias já não faziam mais parte da minha vida. Eu perdera o direito a elas. Todas tinham algo em comum. Um propósito.
Eu também... mas não tinha o direito de obtê-lo.
E foi deitado em meio ás flores que esvaziei o frasco que carregava no bolso, derramando seu conteúdo na boca e sentindo-o descer pela garganta. Não demorou muito para que a consciência começasse a me faltar, fazendo com que eu me despedisse do mundo aos poucos.
- Eu te amo, Angeline... me perdoe.
Então veio o escuro. O vazio. O nada completo.


Cheguei a pensar que flutuaria naquela escuridão eternamente, mas após algum tempo, não sei dizer se foram segundos, dias ou anos, acordei em um lugar que não sabia definir nem como céu nem como inferno. Muito escuro e silencioso para o primeiro. Muito frio e úmido para o segundo.
Purgatório.
Solidão. Este sentimento sufocava-me naquele momento... e suas dimensões eram tão largas que me faziam pensar que viravam uma dor física. Não sei se o tempo corria do modo como eu havia aprendido na Terra, mas posso dizer que passei dias naquele lugar, andando naqueles corredores úmidos e carcomidos pelo mofo, em busca de alguma coisa que eu não sabia o que era. Não achava a luz, nem o fogo.
Cansado e desesperado eu chorava, sabendo que não era isso que eu havia imaginado. Aninhei-me no chão em posição fetal e em cima de uma poça d'água que havia ali. Nem me importei, pois sabia que aquela poça era das minhas próprias lágrimas.
Foi algum tempo depois, talvez dois dias, que meus olhos captaram uma mudança no ambiente. Algo se movimentava entre os corredores. A princípio pensei que fosse o demônio que cansou de me esperar e viera buscar-me.
Só que a sombra transformou-se em luz assim que entrou em meu campo de visão, e queimou meus olhos frágeis por um momento, tão acostumado estava á penumbra.
Acreditei que tinha perdido a razão, pois imaginei que aquela luz era Angeline, com seus cabelos negros e seus olhos castanhos, vindo até mim. Só me dei conta de que aquilo era real, ao vê-la mais de perto.
Primeiro veio o espanto, depois o amor... Depois o pânico.
O que ela estava fazendo aqui!?
Levantou-me e me abraçou com ternura, enquanto só o que eu conseguia fazer era chorar espantado e aterrorizado.
- Ange, o que está fazendo aqui?
Só havia em seu olhar, aquela ternura dos apaixonados, e aquela firmeza de quem sabe o que faz.
- Eu disse que estaria com você onde quer que estivesse. Vim buscá-lo.
Abriu um sorriso enquanto eu a via abrir as asas de anjo. Oh, minha Angeline... minha vida e minha paz, cuja alma era tão pura que nem teve de passar pelos horrores do purgatório. Não conseguia desviar os olhos dela. Aquela que agora queria me levar para a luz... junto de si.
Pegou-me pela mão e assim fomos juntos até acima das nuvens, para longe do frio... do fogo. Para a eternidade.
Existem amores que duram até a morte. Outros, porém, vão até além da vida.

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Olhos

Tenho aqueles olhos... de quem já sofreu sessenta anos em meros dezessete. Faço parte daquela parcela de pessoas que já conheceram do mundo somente - ou quase - a pior face.

Sou aquela que na mente tem... trejeitos... suspeitos, e na consciência, algumas atitudes das quais não se deve orgulhar. Olhos, aqueles... Sombras que não os deixam revelar... nada sobre mim. Só, talvez, aquela expressão peculiar que carregam aqueles que já perderam... toda a inocência. Adjetivo, substantivo. Arrependimentos passados. Não vou justificá-los, pois não há meio de fazê-lo sem entrar em contradição.
Faço parte daquela parcela de pessoas a qual a magia não alcança. Daqueles que tem a dor por tão constante companhia, que já nem é surpresa, e sim, certeza.
Uma palavra, um ato. A escolha dos personagens foi quem definiu o meu papel dramático. Melancolia coadjuvante... em mim protagonista. Tudo por causa de uma simples palavra, tão superestimada. Tão dolorida, tão amaldiçoada.
Amor... famoso anti-herói de meu coração.

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