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A Metáfora do Anjo

   E então eu era apenas David Valdivera escorado novamente no canto escuro de seu apartamento.
   Mais uma noite vazia e solitária, como costumavam ser as minhas desde um tempo que nem me lembrava mais.
   Quando me abstraía nesses momentos é que costumava aprisionar-me em meu interior e revelar a mim mesmo novamente o filme de tantas as coisas que já sabia. Ria da admiração das pessoas diante do ''grande e brilhante escritor'', como me pintavam.
   Olhei em volta. Com o tempo, passei a associar alguns objetos e situações às descrições de mim mesmo e meu estado de espírito. Contos sombrios. Uma xícara cheia de um café que esfriava, perdido. A fumaça dos sucessivos cigarros... a chuva. O vento. O frio. Todos tão vazios e perdidos quanto eu.
   Naquela noite estava fumando mais que o normal, embora estivesse são. À minha frente via-se toda a Barcelona das almas perdidas. Seus sucessivos picos de prédios e mausoléus erguendo-se como dedos longos demais para um céu que há muito tempo os havia abandonado.
   Deixava que aquela cidade dos malditos me contasse suas histórias quando ouvi passos atrás de mim.
   Ao olhar para trás, não surpreendi-me.
   - Boa noite, Daniel - cumprimentei.
   - Que diabos houve com você, David?
   - Também estou feliz em vê-lo.
   Olhava-me com aqueles olhos azuis lápis-lázuli assim como uma mãe repreendendo uma criança ou, nesse caso, um pai. Porém, seus cabelos lisos claríssimos e aspecto em geral eram perfeitos demais para convencer naquele tom severo.
   - Está sumido a cinco dias - acusou.
   - Estive em casa - protestei.
   - Sem atender à campainha e ao telefone.
   - Queria ficar sozinho.
   Suspirou.
   - Não entendo você, Dave.
   - Você e mundo.
   Daniel era meu amigo há muitos anos, desde criança. Talvez fosse ele o único elo entre mim e o mundo e o convívio social. De quando em quando saíamos pelas ruas da Rambla e pelo parque de La Ciudadela. Rimos e choramos juntos. Crescemos e permanecemos juntos. Gostaria de saber o momento em que o mundo contaminou a minha alma com tantas impurezas. Acho que a sociedade não afetou Daniel, mas corrompeu a mim. A ponto de ser o seu extremo oposto. Mas não sabia.
  E agora estava ele novamente no meu apartamento, cuidando de mim. E lá estava eu novamente, estragando tudo.
   - Como entrou aqui? - perguntei.
   - Pela porta da frente.
   - Estava trancada.
   - Não estava.
   - Está trancada há cinco dias.
   - É impressão minha ou está deixando claro que minha presença aqui está lhe incomodando?
   Parabéns David, seu babaca. Seja mais um pouco idiota com a única pessoa que se importa com você.
   - Oh Deus, não. Claro que não.
   - Então, diga. Por que insiste em se enclausurar neste canto anguloso, estreito e escuro da sua mente?
   Esfreguei os olhos, exausto de nada e de tudo ao mesmo tempo. Ainda segurava o cigarro na mão quando olhei nos olhos azuis daquele que conhecia coisas em mim que talvez nem eu mesmo conhecesse.
   - Eu me faço a mesma pergunta, Dan. O altruísmo, a bondade e a alegria de viver são, infelizmente, virtudes que eu não possuo.
   - Não pode ser tão intimista e de um modo tão negativo.
   - Sou um escritor de dramas. Se não for intimista e negativo não pagam meu maldito salário.
   - Não, você é os dramas que escreve. É diferente.
   Dei de ombros.
   - David, conheço escritores de tragédias que vivem muito bem e felizes. Não pode limitar sua imaginação apenas às coisas que é capaz de sentir.
   - Está querendo que eu mude o meu estilo literário?
   - Não. Só queria que seu estilo literário não fosse um reflexo da sua vida.
   - Não pode fazer milagres.
   Por algum motivo que desconheço, Daniel achou muita graça do que eu disse.
   - Não entendo o que achou tão engraçado.
   Aproximou-se de mim e olhava-me com uma seriedade que eu nunca tinha visto.
   - Um dia você entenderá que eu posso fazer muito mais coisas do que você imagina.
   Olhei meu amigo pela primeira vez naquele dia, realmente. Ficou muito próximo de mim. Sentia sua respiração no meu rosto, e daquele modo pareceu-me um tanto ameaçador. Senti um calafrio de medo percorrer minha espinha.
   - Vai me beijar agora? - perguntei, mal escondendo um tremor na voz.
   A tensão se desfez imediatamente, e vi ressurgir o sorriso de Daniel, que se afastou  de mim para completar o espaço vazio na janela e olhar a mesma Barcelona que eu olhava a alguns minutos.
   - Não, David. É você quem gosta dessas coisas, não eu.
   - Gosto de muitas coisas diferentes.
   Riu com gosto.
   - Oh, sim.
   - Você também haveria de gostar, creio - brinquei.
   - Só é possível converter um pecador. Nunca um santo.
   Sorri com malícia.
   - E o pecador sou eu, suponho.
   - Isso é óbvio. Mas não mude de assunto.
   - Ah, droga. Tive esperanças.
   Voltou a me olhar com aquela preocupação que, do fundo do meu coração, eu pensava que não merecia.
   - Prometa pra mim que tentará viver um pouco mais. Não se tranque neste apartamento. A vida é cruel com todos, mas não desperdice seu tempo aqui sozinho. Vamos fumar, beber e cair juntos, como os bons amigos que somos. Só não enterre o que tem de bom aí dentro neste lugar vazio. O que acha?
   - Vai me socar se eu merecer?
   - Claro, seu babaca.
   Ri alto.
   - Assim é melhor - respondi.
   Abraçamo-nos e Daniel fez menção de sair. Naquele instante me senti tão grato... Podia fracassar um milhão de vezes, mas poderia me esforçar para pelo menos merecer uma parte que fosse daquela amizade de Dan.
   Reparei nele.
   - Você está meio ''radiante'' sabia?
   Ele contornou, mas não pude deixar de notar que ficou desconcertado.
   - Está fumando o quê, exatamente, David? - brincou.
   Oh, não. Não era impressão, mas não continuei o assunto. Devia muito a ele e não queria chateá-lo.
   - Você é um anjo - brinquei.
   Abraçou-me uma última vez
   - Cuide-se. Faça isso por mim.
   - Farei.
   E saiu. Se fosse um dia qualquer não teria notado o barulho estranho que ouvi em sua saída. Comecei a pensar que amigos eram mesmo anjos, mas sem asas e coisa e tal. Coloquei a cabeça para fora da janela para certificar-me que estava tudo bem com Daniel.
   Não havia sinal dele.
   Desci as escadas. Nunca fui um homem de duvidar muito do mundo e de suas peripécias. Como escritor, já ouvira falar de histórias da mais diversas, e seria louco de dizer que nunca acreditara em nenhuma delas.
   Eis que vi. O lugar onde provavelmente saíra. Lá estava. PENAS. Penas e o cheiro de almíscar de Daniel.
   Voltei para casa para entornar alguns copos de uísque.
   - Sem asas, é?




Vanessa Coelho Puchalski.

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